Capítulo 5. Viajem ao Norte

A Loucura de Sir Henry

Essa história, minha Senhora, é um exemplo de como as nossas ações podem fazer mudanças drásticas em nossas vidas. Era fim do ano de 486 e os cavaleiros haviam se retirado para seus feudos. Tudo prosseguia normalmente. Sir Dorian tentou lidar com o problema dos lobos, Sir Haggen desfrutava de seu casamento pela primeira vez em sua casa. Porém Sir Henry recebeu uma visita inusitada. Era tarde e ele vistoriava a igreja parcialmente construída de seu feudo quando Lady Lana adentrou o arco inacabado da igreja, trazendo consigo um guarda-costas.

– Que bom revê-la, Lady Lana! Não esperava lhe encontrar fora de Sarum.

Lana correu até seu amado e o abraçou e o beijou.

– Precisamos conversar, e é muito sério. – disse a donzela em tom sombrio, com os braços cruzados sobre o pescoço de Henry.

– Mas o que poderia ser tão sério a ponto de trazê-la até aqui antes do Natal?

– Estou grávida Henry – disse sem demora – e a barriga já está ficando difícil de esconder. Meu pai ainda não percebeu, então vim rápido para cá quando soube que havia retornado.

A notícia pegou Henry de surpresa – ele não sabia o que fazer. Ele convidou a dama a ficar em sua casa alguns dias, e enquanto isso, pensou em uma solução. Ele se lembrou do presente de Sir Dorian para Sir Haggen, e se perguntou onde ele conseguiu aquele elixir. Ele foi até Baverstock ver seu amigo, que lhe indicou uma velha bruxa.
"Mas cuidado, a Deusa é invejosa e ciumenta.
Às vezes leva a alma da criança, às vezes só
da mãe, às vezes leva a ambas. Mas às vezes,
muito raramente, gosta tanto das pessoas
da casa, que leva TODOS."

A mulher, conhecida apenas por “A Bruxa”, lhe vendeu uma poção que, segundo ela, atrairia a deusa da morte e que levaria a criança embora. Porém, ela advertiu que a deusa era invejosa e ciumenta, tal que por vezes levava a alma da mãe e da criança, às vezes só da mãe – e disse ainda que, às vezes se gostava tanto das pessoas que levava a casa inteira consigo. Com medo, mas decidido, ele levou o preparo místico.

Depois de dois dias, Henry volta a sua morada e, de noite, engana a dama, fazendo-a tomar o elixir pensando ser uma bebida destilada. Por uns instantes nada aconteceu, o que fez Henry achar que a poção não tinha surtido efeito. Mas, quando uma dor abrupta tomou de assalto o ventre de Lady Lana, Henry viu seu plano funcionando. Os gritos chamaram a atenção de todos na casa e o cavaleiro guardião da dama adentrou o quarto perguntando o que aconteceu.

– O que você fez com ela? – ele acusou.

– Nada, apenas lhe dei uma bebida! – Henry se defendeu.

O cavaleiro então cheirou o copo de madeira, e sentiu um cheiro incomum vindo dele.

– Você a envenenou, seu cretino! – e fez menção de sacar sua espada.

– Como ousa me acusar de tal forma? Eu os acolhi em minha morada e os alimentei! Se os quisesse mortos, já os teria matado! Agora pare de falar merda e vamos pegar água para ela.

Ambos os cavaleiros desceram até o pequeno poço próximo a casa da família Beckham e pegaram um balde d’água cada um.  Na volta, Sir Henry pôde observar uma figura sombria, em mantos escuros, o observando da janela de seu salão. Ele correu, derramando parte da água, mas o vulto já havia sumido. Quando adentrou no quarto sua mãe e sua irmã estavam lá, mas Lana jazia quieta no chão. Henry tentou leva-la a um curandeiro na vila, mas nada que ele fizesse podia impedir o inevitável – Lady Lana morreu naquele, minha Senhora, algumas semanas antes do Natal.

A história da morte de Lady Lana repercutiu por toda a corte de Salisbury, todos sabiam que ela havia morrido no feudo de Wylye, sob circunstancias suspeitas. Haviam boatos que sir Henry havia envenenado a dama pois ela estava grávida, outros diziam que ele a havia sequestrado e assediado, e alguns ainda diziam sir Henry a havia encantado com um feitiço de amor.

A verdade é que muitas histórias surgiram do ocorrido, e sir Henry não estava conseguindo lidar com todas. Ao invés de falar a verdade ele contou a seus conhecidos a sua versão da historia (que ela havia passado mal e morrido sem razão aparente), mas conforme as histórias surgiam e escalonavam de tamanho, ele não soube como lidar com elas, tornando obvio que estava mentindo. No natal, tomado pelo embaraço, sir Henry decidiu que a maneira mais fácil de evitar a vergonha era duelar com o pai de Lady Lana, acusando-o de alardear a historia falsa.

E assim ocorreu – sir Henry duelou e venceu, no dia de Natal, humilhando o pai de Lana, que além de perder a filha, perdeu a dignidade. Essa história é um ótimo exemplo, minha Senhora, de como nossas escolhas em vida podem traçar um caminho sem volta. Sir Henry queria ser um cavaleiro honrado, mas seu coração era facilmente tomado por escolhas fáceis e vís. Isso o seguiu por toda a sua vida e também refletiu no seu fado.

O Banquete da Grande Espada

Na noite de Natal, o Rei Uther sediou sua corte em Sarum. Lá estavam presentes alguns de seus leais barões e duques. O jantar estava sóbrio e desanimado, afinal o Rei estava preocupado, se certificando se a produção de armas e treinamento dos soldados estava de acordo para o próximo ano. Então teve inicio a entrega de presentes. Roderick ordenou que entrassem com um pano branco comprido, envolvendo um grande volume, trazido por quatro homens. Então presenteou primeiro os serviçais do castelo, seguidos de seus cavaleiros vassalos que estavam presentes no salão. Sir Dorian e Haggen receberam alguns xelins, enquanto Sir Henry recebeu um punhado de denarii – uma obvia demonstração de desaprovação ao comportamento do cavaleiro. Depois o earl presenteou os oficiais residentes e, por fim, sua família. Após a premiação o banquete foi servido.

Foi então que um murmúrio teve inicio do fundo do salão e, em meio ao banquete, que ouviu-se um arauto bradar “Apresentando o grande arquimago Merlin, guardião da Bretanha!”, porém o impaciente mago adentrou o local sem delongas. Ele caminhou, não pela direita nem pela esquerda, mas pelo centro d, até ficar diante de Uther, que sentava no trono do earl.

– Bem vindo, Merlin, a esses Salões – disse o Rei – Você é sempre bem-vindo a minha corte.

– Ouro e prata, roupas de terras longínquas, esses certamente são os presentes apropriados a um rei. Ainda assim, tu Uther, mereces mais, pois não há ninguém neste mundo, nem mesmo em Roma, que se sente tão alto quanto tu. – diz Merlin, fazendo o rei se sentir lisonjeado – Ainda assim, até mesmo a ti falta algo.

O rei fica sério e a sala murmura com o tom que o mago assumiu.

– Um homem de tamanha grandeza merece nada além do melhor, e ele, que trará paz para nossa grande terra merece tudo que puder ajuda-lo a obtê-la. E assim, eu, teu humilde servo, tenho o prazer de lhe oferecer, de minhas fracas mãos, isto...

Foi então que ele retirou de seus mantos uma espada brilhante, cuja própria luz interior fez com que todos arquejassem de deleite e admiração. Até mesmo o rei se surpreendera. Merlin pegou a espada por sua lâmina e entregou a empunhadura ai rei.

– Para o Rei! – disse Merlin de uma forma triunfal – Excalibur, a Espada da Vitória!

Houve uma gritaria geral, até que o rei se levantasse. Então o silencio tomou a sala, o rei estendeu seu braço direito e empunhou a arma. Com um sorriso ele ergueu a arma e gritou “Agora estou preparado para visitar alguns amigos!”. Duque Ulfius ri numa mesa próxima e o clima de alegria tomou o salão, reiniciando o banquete. Uther chamou o mago para se sentar ao seu lado e todos comemoram.

Ao fim do banquete, o feiticeiro foi até earl Roderick e o contou sobre a participação dos cavaleiros Dorian, Haggen e Henry. “Observe bem esses homens, o destino é poderoso com eles!” disse ele. Desconfiado, Roderick se aproximou deles e lhes deu duas opções: ir com o príncipe Madoc numa campanha que eles estava elaborando ou ir com ele e o rei para uma visita aos ducados vizinhos. Eles escolheram ir com o rei.

A Embaixada de Lindsey

Mapa de Lincoln, Capital de Lindsey
Na primavera do ano de 487 o séquito real marchou para as terras do norte, terra de alguns dos mais insubordinados vassalos do rei. O rei levou consigo o mago Merlin, o Duque Ulfius e muitos outros nobres, incluindo o earl Roderick. A comitiva chegou a Lincoln, a capital do ducado de Lindsey, governado pelo Duque Corneus. Porém encontraram o trono vazio – o duque não estava lá.

Nos dias que se seguiram, os nobres tiveram pouco o que fazer para passar o tempo. A caça foi a maneira encontrada por muitos para ocupar a cabeça. E em uma destas aventuras, Sir Dorian e Sir Haggen, acompanhados de outros dois cavaleiros encontraram a toca de um gigante, derrotando a besta com uma colossal dificuldade. Com ele encontraram um chifre com runas entalhadas e descobriram que a criatura deveria ter desertado do exército saxão.

Brasão de Lindsey
Enfim, quando o duque apareceu, houve um grande banquete e o mago Merlin pediu para que Haggen contasse o que ocorrera na floresta. O cavaleiro contou o feito de tal maneira que todos no salão se silenciaram e prestaram atenção. Sua recordação foi tão vívida que todos se sentiram imersos na história. Quando foi mencionado que Merlin havia adquirido a espada no lago, o feiticeiro retirou de suas vestes Excalibur, e a exibiu para a corte de Lindsey. Foi então que Uther assumiu o discurso e prometeu a vitória sobre os invasores, o Duque se mostrou mais favorável ao rei e todos comemoraram.

A noite foi especial para Sir Henry que enfim conheceu Lady Shay, uma donzela que havia perguntado a seu respeito alguns dias antes do banquete. Ambos fizeram juras e promessas, mas foram interrompidos pelo pai da jovem, que possuía um estranho ódio por sulistas. Após uma discussão, onde ficou clara a posição do pai da jovem, ele foi embora dizendo que “daria sua filha a um bode antes que a deixasse casar com um sulista”. Henry pôde ver que tudo foi uma armação de Sir Ogbert, um cavaleiro local apaixonado por Shay, que os entregou ao pai da moça. Furioso, Henry ameaçou Ogbert, que o ignorou.

Na manhã seguinte o Duque partiu com seus homens novamente, deixando o Rei em seu castelo pelo tempo que fosse necessário. Uther decide então que era uma boa oportunidade para fazer os nobres provarem sua lealdade – ele enviou diversos mensageiros aos baronatos, ducados e reinos vizinhos com o intuito de relatarem que Lindsey agora era leal e que o Pendragon estava em posse da Espada da Vitória.

Sir Dorian, Haggen e Henry foram enviados ao reino de Malahaut. “Se Merlin diz que eles são especiais, Roderick, está na hora de provarem!” disse o rei.

A Embaixada de Malahaut

Já era verão quando os cavaleiros chegaram em Malahaut. O reino de Heraut de Apres, o Rei Centurião. Malahaut é o maior e mais poderoso reino de Cumbria, regido da cidade de Eburacum. O reino, no entanto, foi fortemente assolado por saxões que assimilaram terras de Deira, a costa leste do reino, da mesma forma que fizeram em Kent e Sussex.

Ao chegarem a cidade, os cavaleiros, acompanhados de mais dois, se viram forçados a permanecer na parte sul de Eburacum. A parte norte, segundo lhes foi explicado, só era permitida ao Rei e seus soldados, que não se encontravam na cidade. Heraut levou sua legião para a fronteira de Deira, onde combatiam os invasores.
Mapa de Eburacum, Capital de Malahaut

Eburacum é a principal cidade do norte da Bretanha. Possui uma grande abadia, um arcebispado, uma fortaleza, muralhas altas e um vasto mercado. A localidade  fica  à  margem  do  rio  Ouse  e  tem  orgulho  de  sua  ponte,  mas  os  navios podem chegar a Eburacum do mar distante. Parte da muralha era construída de pedra, trabalho romano, mas boa parte da cidade era protegida por um muro de terra encimado por uma alta paliçada de madeira, e a leste da cidade parte dessa paliçada estava faltando.

Logo que souberam sobre a ausência do Rei os cavaleiros trataram de partir atrás dele, no entanto, ele havia seguido estrada leste que parte do lado norte da cidade – ou seja, os cavaleiros precisavam contornar o rio pela ponte ao sul, passando pelos pântanos para tentar encontrar a legião. Antes de partir Sir Dorian enviou uma carta para Roderick avisando do que fariam.

Brasão de Malahaut
Garoava pesadamente, os cavaleiros se dirigiam por entre uma trilha na floresta de Deira. Era meio dia e estavam famintos, quando Sir Haggen avistou um movimento nos arbustos e decidiram avançar um pouco antes de almoçar. Após uma longa galopada começaram a ouvir um tumulto muito distante, mas conforme avançavam xingamentos e ameaças de morte foram ficando cada vez mais audíveis. Eles apressaram o galope até chegarem em um vilarejo com uma igreja no seu centro. O templo estava cercado por moradores, meros plebeus, inflados de ódio, gritando e arremessando pedras, expressando seu ódio contra a casa de Deus.

Bastou perguntar a alguns aldeões o motivo da ira para revelarem que o padre abrigava um saxão na igreja. Os cavaleiros então decidiram intervir. Sir Dorian, Haggen e Henry entraram na igreja, enquanto os demais cavaleiros e os escudeiros lidavam com a população.

O Padre, desesperado, suplicou aos cavaleiros, dizendo que o saxão estava ferido e havia pedido ajuda. Interrogado, ele disse que o saxão não falava o idioma bretão, mas que sabia que o caminho de Deus o salvaria, e insistiu que poderia ser bom mostrar piedade aos saxões, poderiam até mesmo convertê-los.

Então começou uma discussão – Sir Henry queria de toda maneira executar o saxão, enquanto Sir Haggen, um pagão orgulhoso, alfinetava a religião cristã de Henry, que pregava o perdão e a bondade. Sir Dorian, indeciso, concordou com Henry que o melhor seria executar o saxão, e assim fizeram. Levaram o moribundo para o meio da vila, onde a multidão ansiava por sangue e o colocaram de joelhos. Haggen disse para darem ao menos uma arma para o saxão lutar e morrer dignamente, mas Henry negou e se preparou para golpeá-lo nas costas.

O saxão olhou para Sir Dorian, ergueu uma das mãos em direção a espada do cavaleiro, como se suplicasse, então Dorian entregou-lhe a arma, no mesmo momento em que Henry golpeou. O punho do saxão se fechou na empunhadura da espada com força e quando caiu Dorian teve dificuldade de recuperar sua arma. “É incrível a vontade com que ele segurou essa espada!” observou o cavaleiro.

Ele não sabia, Minha Senhora, mas os saxões naquela época eram crentes na fé pagã de Wotan, sendo assim os homens só seriam agraciados com o descanso no paraíso dos guerreiros se morressem com a espada na mão. Sir Dorian não tinha como saber isso, mas sua atitude foi muito nobre, o que salvou suas vidas no que estaria por vir.

Enquanto a multidão comemorava a morte do saxão, Sir Haggen e Sir Henry discutiam ferozmente, Haggen acusando Henry de covardia, colocando a honra do cavaleiro em Cheque. Sir Dorian não sabia o que fazer e o desentendimento escalou a tal ponto que ambos sacaram suas espadas. Foi somente quando gritos na multidão foram ouvidos que ambos pararam. "Saxões!" alguém gritou, e o pânico tomou a cidade. Saqueadores saxões haviam chego.

Por enquanto basta, mês que vem lhe entrego a conclusão, Minha Senhora.

Feliz Natal, Lady Mildrith.
Filha de Ceawlin.
Rei de Wessex.

Frade Derfel
Dezembro do ano de Nosso Senhor de 572

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