Capítulo 2. Tempos de Desespero

Duelo em Sarum

Então minha senhora, eis que tudo começou. Era uma manhã úmida na antiga cidade de Sarum, no condado de Salisbury, pertencente na época ao saudoso earl Roderick – que descanse em paz.

Meu pai, que era apenas um pajem nessa época, disse que houve uma grande batalha, e que era uma época terrível naquele ano de 485 de nosso senhor. O arquimago Merlin estava desaparecido há meses e as forças de Uther lutavam sem a ajuda do feiticeiro. Boatos ainda diziam que mais e mais saxões chegavam às praias do leste, mas em Sarum, a única coisa que importava era o duelo de Sir Eustace de Wilton, com Sir Geoffrey, castelão de Du Plain.

Sir Eustace, de Wilton
Sir Eustace vomitava pesadamente. Amaldiçoava a hora em que decidiu passar a noite na casa de sua amante, Magdeline, e beber todo aquele vinho. Seus escudeiros, Dorian e Haggen tentavam ajudá-lo, mas pouco podia se fazer a não ser torcer para que ele não sujasse a cota de malhas.

Mesmo com a ajuda dos medicamentos trazidos por Haggen, Eustace parecia não melhorar. Dorian decidiu então partir atrás do terceiro escudeiro, Henry, que havia ido buscar as armas de seu senhor, mas que, sabia Dorian, devia ter se desviado a um bordel infame localizado próximo ao ferreiro. Fatalmente ambos se perderam nos braços das damas e, quando voltaram, encontraram Sir Eustace já mais disposto e agora pronto para o confronto.

Ao lado da estátua de águia romana, na entrada do bairro dos mercadores, em frente ao Portão do Tolo, ali estava Sir Geoffrey e seus escudeiros, entre eles o jovem Murdok. Uma multidão se aglomerava ao redor, esperando pelo duelo. Foi então que Sir Eustace surgiu, com uma expressão de fraqueza.

Sir Geoffrey, de Du Plain
– Já não era sem tempo, velho gordo – bradou Sir Geoffrey – Achei que estavas se afogando em teu próprio vômito.

– Jamais perderia uma chance de esfregar tua cara na lama Geoffrey, mesmo bêbado ainda sou capaz de chutar tua bunda.

– Espero que tenha trazido tua espada, e não a tenha deixado no estrume onde vive.

– Minha morada é a cama de tua mãe. E ela quer que eu lhe dê uma surra.

Exaltados, ambos os cavaleiros se aproximaram e desembainharam as espadas.

– Até que somente um esteja em pé – disse um padre que estava na multidão, julgando o duelo.

Ao que parece era uma rixa antiga, possivelmente pela disputa de uma donzela, que nenhum dos dois desposara, mas que gerou entre ambos uma rivalidade eterna. Esse foi apenas um dos muitos duelos entre Sir Eustace e Sir Geoffrey.

Apesar de tudo, a luta foi consideravelmente rápida, com a vitória de Sir Eustace – inicialmente em desvantagem, sofreu algumas escoriações e um corte superficial em seu braço, mas aproveitou a abertura de guarda de Geoffrey para derrubá-lo com um golpe no estomago e uma pancada na cabeça.

– Posso ser velho, mas é tu que rasteja no chão, Geoffrey.

Com a vitória, os jovens escudeiros ovacionaram seu senhor e todos foram comemorar em uma estalagem. Dorian se empanturrou, Haggen tentou portar-se apropriadamente, mas Henry logo arranjou mais mulheres para todos. Eles festejaram a vitória de seu senhor e aproveitaram sua juventude, mal sabiam eles o que estaria por vir.


 Cerimônias Apressadas

No meio da noite galopes foram ouvidos. Eram cavaleiros, recém-chegados do campo de batalha. Nos dias que se seguiram espalhou-se o terrível boato de que as forças de Uther foram derrotadas numa série de batalhas, e muito de seus homens pereceram. Houve um momento de incerteza na corte, mas as ordens do rei eram claras: todo escudeiro minimamente preparado e na idade adequada deveria ser armado cavaleiro.

Earl Roderick, de Salisbury
E assim aconteceu – numa manhã chuvosa earl Roderick convocou todos os seus cavaleiros com seus respectivos escudeiros até a Catedral da Santa Virgem Maria. Havia muitas figuras conhecidas ali além do conde: sua esposa, condessa Ellen; Sir Elad, o marechal do condado e castelão de Vagon; Roger, o bispo de Salisbury; e Tewi, o padre pessoal do earl.

Um a um os escudeiros se ajoelharam perante Roderick, receberam a bênção do bispo, proclamaram seus juramentos e foram agraciados com uma espada. A cerimonia foi realizada com agilidade – havia muitos escudeiros a serem armados, sendo assim a cerimonia tomou boa parte da manhã. Uma vez concluída o earl fez uma proclamação:

– Agora que fizeram vossos juramentos e se ergueram como cavaleiros, devo cobrar tais votos. Cada um de vós deve retornar a morada de vossa família e proclamar-te senhor de tuas terras. – bradou Roderick, imponente, sobre o altar da catedral – Em não mais do que duas semanas retornem para Sarum, para que eu possa definir os teus futuros, e o de Salisbury.

Todos saudaram Roderick, os monges cantaram e houve celebração. Enfim, antes de se retirar, o earl faz uma ultima ressalva:

– Peço a meus vassalos que, neste tempo, não deixem de treinar um dia sequer com a espada, pois certamente nossos inimigos não podem ser subestimados e anseiam por vosso sangue.

E foi assim, minha senhora, que eles tornaram-se cavaleiros. Em um momento de crise e incerteza, Uther reforçou seus exércitos com uma geração de jovens escudeiros que, como uma espada, teriam de ser forjados nas chamas da fornalha, moldados pelos golpes de martelo e afiados contra a pedra fria, para se tornarem verdadeiras armas de guerra.

Escudeiros saudando earl Roderick ao fim da cerimônia

A Batalha de Mearcred Creek

Rei Uther Pendragon

As semanas se passaram rapidamente quando, no inicio de Abril do ano de nosso senhor de 485, os cavaleiros retornaram a Sarum. Eram muitos, e há quem diga que Roderick armou mais cavaleiros nesse meio tempo. O earl recebeu seus homens em seu grande salão para um banquete antes da viagem. Lá eles aguardaram a chegada do rei Uther que, segundo diziam, reuniria seu exército na cidade. Eles chegaram na semana que antecedeu a páscoa, e no domingo sagrado houve uma grande festa para nosso senhor abençoar as forças do rei.

Porém a situação era auspiciosa e nem todos os seus vassalos se mostraram leais o bastante. Duque Gorlois e os barões da Cornualha se ausentaram, assim como os lordes Cambrianos e mesmo alguns nobres de seu próprio reino. Mais uma vez Uther sentiu que seu governo estava ameaçado, e que não somente os saxões eram seus inimigos.

Mesmo assim ele marchou. Trazia consigo dois mil homens, composto em sua maioria por fazendeiros e trabalhadores, armados com ferramentas simplórias e armas improvisadas, usando pouca ou nenhuma proteção, obrigados a defender suas terras contra os invasores. Algumas centenas de homens de armas com espadas, lanças e escudos de madeira, vestindo armaduras de couro arrebitado. Em menor número estavam os seteiros e arqueiros, com suas bestar e arcos curtos, para fazer pressão sobre o inimigo. Sargentos lideravam os homens em batalha – esses sim eram a elite do exército de Uther, armados com espadas, escudos e armaduras de cota de malhas, eram quase que cavaleiros, só que apeados.

Havia uma, talvez duas, centenas de cavaleiros no campo. Em sua maioria recém armados, jovens e dispostos. Mas também haviam aqueles endurecidos pelo combate, entre eles o próprio Roderick e seus mais hábeis cavaleiros. Havia os romanos de Silchester e nobres de diversas outras partes de Logres, sendo todos liderados pessoalmente por Uther. Esse era o exército bretão, e eles avançaram sobre Sussex. Batedores patrulhavam as regiões ao redor das tropas em busca de qualquer sinal das forças saxônias, e enfim encontraram, numa manhã, uma força de três mil guerreiros inimigos, marchando rumo ao oeste.

Assim que os batedores relataram a investida, Uther organizou seus homens. A região de Mearcred Creek era composta de colinas arborizadas e, em uma dessas colinas Uther organizou uma parede de escudos de maneira que os saxões teriam que escalar a encosta, mesmo ela sendo pouco íngreme. Isso minimizaria o fato da desvantagem numérica pois, com menos homens, Uther teria que alongar a sua parede de escudos e, assim, ela ficaria mais fina. E todos sabem que uma parece fina é fácil de quebrar. O rei, por sinal, cobriria o flanco esquerdo do campo de batalha com seus cavaleiros de elite, deixando as forças a pé ao centro e os jovens cavaleiros no flanco direito. Porém a cavalaria só agiria depois que as forças se chocassem. Essa era a estratégia dos bretões.

Berserkers saxões investindo contra a parede de escudos.


Quando o inimigo surgiu no horizonte os homens estavam sóbrios. Meu pai sempre falou como a bebida dá coragem aos homens e, sem ela, o medo se instaurou. Abaixo da colina uma parede de escudos foi erguida, tão longa quanto a de Logres, porém bem mais espessa, com cinco ou seis homens. Ambas se alinharam e os saxões investiram com escudos erguidos sob fogo de flechas. Foi quando a linha saxã se dividiu e uma cunha de homens furiosos e sem armadura, empunhando grandes machados, investiu contra o meio da formação bretã com tamanha força que dividiu a parede em duas. Cada metade então se chocou com sua respectiva metade da parede inimiga, e a batalha enfim havia começado.

Nesse momento, o chifre de Uther é ouvido e cavaleiros de todas as partes urram em clamor enquanto cavalgam, de longe contornando as linhas onde a batalha ocorre para alcançar os flancos. Preparam suas lanças e concluem a passada, podendo pegar a parede inimiga pela retaguarda. Sangue e desespero quando as lanças atingem o alvo, ameaçando os flancos, dividindo a atenção dos guerreiros, fazendo com que homens abandonem a parede de escudos para enfrentar os cavaleiros agora em seu meio.

Com as lanças inutilizadas, espadas são sacadas e fazem soar a canção da batalha. Os escudeiros contaram que, de longe, puderam ver seus senhores retalharem os flancos, porém, adentrarem demais na linha inimiga. O caos se instaurou e muitos cavaleiros caíram após essa primeira investida. Dois jovens dentre eles, Sir Haggen e Sir Dorian, se destacaram.

Haggen permaneceu e liderou seus iguais em meio a baderna, enquanto Dorian e mais um punhado avançaram sobre os arqueiros inimigos. A luta foi cruel – os saxões trouxeram lanças compridas para derrubar os cavaleiros, mas Haggen não temeu e investiu contra eles, matando o líder dos lanceiros e um berserker que quase o dividiu em dois com um machado. Dorian, por outro lado, resgatou um cavaleiro ferido por um machado – Ele havia perdido a consciência e seu cavalo disparou para as linhas inimigas. Dorian o perseguiu e tomou as rédeas, mesmo sofrendo inúmeros ataques saiu ileso com o cavaleiro e o levou para as reservas onde escudeiros os receberam.

Os cavaleiros então recuaram, assim como as linhas de guerreiros, haviam muitos mortos e sangue na colina, de modo que o terreno estava debilitando por demais ambos os lados. Houve um recesso, e por quase uma hora ambos os lados limparam o campo, retirando os corpos. O estrago abalou a moral de ambos os lados e uma nova parede de escudos foi erguida de cada lado, a batalha recomeçou. Os cavaleiros, exaustos, circundaram o campo e arremessaram lanças, mas já não possuíam ânimo para lutar. O combate em fim se encerrou com os saxões recuando, mas Uther não tinha ímpeto nem homens para persegui-los Sussex adentro. A batalha foi inconclusiva.

Em seu acampamento, enquanto os homens saqueavam os restos inimigos em busca de um butim, Uther convocou seus vassalos e servos leais e agradeceu a todos os presentes. Seu tom era sóbrio, e pouco comemorativo.

– Agradeço a todos que vieram e sangram neste dia em nome de nossa terra. Agradeço a todo aquele que de alguma forma se sacrificou nesse chão. Sei que muitos perderam as vidas aqui, e sei que muitas baixas poderiam ser evitadas se dispuséssemos de mais homens. Porém... – ele fez uma pausa e assumiu um tom mais enérgico – ...prefiro mil vezes lutar na lama e no charco com um punhado de homens, do que depender da ajuda daqueles vermes dos diabos da Cambria e da Cornualha! Vejam que mesmo em crua desvantagem, vejam que nos erguemos vitoriosos contra aquela corja, aquele bando liderado por Aelle!  Sabeis que iremos retornar para casa com a alma lavada com sangue saxão! Eis que honramos aqueles que morreram hoje, ontem e anteontem! Agora bebam meus irmãos! Comemorem pois neste dia de nosso senhor, fomos vitoriosos!

Alguém gritou um exaltado “Pelo Rei!”, e todos gritaram juntos.


Frade Derfel
Setembro do ano de Nosso Senhor de 572





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